Monday, July 26, 2010





PEÇAS PARA A CASA DA CERCA

"Bem perto de Caçador de Nuvens está Momento de um sono cativo (2010, aço, 70x355x70cm), de Paulo Tuna. Varas de aço mordem o chão e enterram-se nele, como quem procura o coração da terra. Enquanto outras, a par, e fechando entre si numa cúpula, em círculo, ficam livres. Para poderem registar a passagem do vento de mais aragem. Por vezes, podem mesmo entrechocar umas nas outras, quando o vento é mais forte. Nesses momentos oferecem breves sonoridades. A escultura de Tuna guarda um espaço protegido pelas varas metálicas (elas têm mesmo uma relativa espessura), assim como se dispõe a uma plena abertura entre essas mesmas estacas. O sono, e talvez porque o autor o refere no título como coisa ou estado cativo, é uma terra prometida. Um momento, refere, como se a sua escultura, também não passasse de um estudo. E ali, cravada naquele chão, no meio de um renque de choupos, Momento de um sono cativo aparece com uma força baptismal, com uma retórica festiva, carregada de visões oníricas. Natural produto de um ego nocturno, antecipador de argumentos e de esperança radical (e mesmo política e revolucionária) que perpassam para a sua outra escultura, presente noutro extremo do jardim: Instante Suspenso (2010, aço, 70x533x40cm). Pensada para, na sua forma de objecto bélico, surgir suspensa e a apontar ao meio da janela que abre sobre o muro, à vista do Tejo e de Lisboa. Acabou por ser colocada no chão do estreito caminho entre jardins, espécie de início de caminho de ronda a que creio, os da Cerca, chamam o passeio das damas. Mas a sua belicidade, o seu sentido de objecto de guerra, mesmo caído e semi enterrado, permanece. E não estando longe as Casas que foram do Senhor Dom António (1531-1595), Prior do Crato (que uma placa nomeia como el-rei — e que de facto e de jure o foi, como António I), Instante Suspenso, parece homenagear (e ainda como produto de um conceito do sonho) a casa insegura portuguesa na perdida batalha, nos fronteiros campos de Alcântara (25 de agosto de 1580)."

Entre a Casa eo Jardim ,excerto de texto para catálogo da exposição "Processo e Transfiguração" da autoria de João Miguel Fernandes Jorge.





"Processo e transfiguração"

PROCESSO E TRANSFIGURAÇÃO

Texto escrito por João Miguel Fernandes Jorge

Convocámos para a Casa da Cerca (na quase totalidade dos seus espaços e jardins, contidos entre a muralha sobre o Tejo e o morro de Almada Velha), 31 artistas: André Banha, Bárbara Assis Pacheco, Daniel Barroca, Francisco Tropa, Gonçalo Pena, João Cruz Rosa, João Maria Gusmão + Pedro Paiva, João Tengarrinha, João Vilhena, Jorge Feijão, Jorge Molder, Jorge Pinheiro, José Loureiro, Luís Nobre, Luísa Jacinto, Manuel Caeiro, Miguel Branco, Moirika Reker Gilberto Reis, Nuno Franco, Nuno Sousa Vieira, Paulo Quintas, Paulo Tuna, Pedro Diniz Reis, Pedro Valdez Cardoso, Rodrigo Peixoto, Rosa Carvalho, Rui Chafes, Rui Vasconcelos e Susana Anágua.
Convocar é um verbo que pode tornar-se por demais determinante de uma acção impositiva. Quando, afinal, o chamamento dos 31 artistas apenas pretendeu traduzir a propriedade dos seus nomes e a viagem que, em processo, a justeza natural desses mesmos nomes — enquanto perseverança, pensamento (ou inteligência de movimento), arte (ou possessão de razoabilidade) —, transformou, isto é, transfigurou a partir de um fluxo de durações. O verbo convocar, tem de imediato consigo o sentido de quem está a chamar para uma reunião, para uma assembleia. E ao começar deste modo o texto de imediato me ocorreu o diálogo Crátilo, de Platão, no momento em que Sócrates pergunta a Crátilo: «Vamo-nos pôr aqui a contar os nomes como se fossem votos? E é nisso que consiste a sua validade? Que sentido será o verdadeiro? O sentido que parecesse assinalado pelo maior número de nomes?» (437d)
As perguntas de Sócrates fazem sentido para este conjunto de 31 artistas e para a singularidade das 29 obras apresentadas (pois quatro desses nomes apresentam, como é sabido, o seu trabalho em duplas de artistas: João Maria Gusmão + Pedro Paiva e Moirika Reker Gilberto Reis). De facto, os seus nomes não estão aqui como presenças sufragadas, mas como elos que se ligam aos objectos, às coisas que processaram. Os nomes instruíram e estão (de certo modo a mostrar e) a clarificar as coisas que resultaram de um longo caminho, que foi a distribuição de probabilidades (de um estado de finalização) num instante futuro. Instante, que nos chega como o presente da actual exposição.
O diálogo de Platão tem ainda na figura de Crátilo a imagem de uma personagem heracliteana, protagonista da defesa de um fluxo e de uma mobilidade que subjaz à ideia de processo de que partimos. Processo que é decisão. Que a cada momento permite tomar um número finito de etapas, quer de uma matéria em bruto quer de premissas (que bem cedo, qualquer dos nomes convocados, pode admitir como) erróneas. Etapas que vão colocando a validade de proposições, uma cadeia magnética com amplo domínio sobre o conhecimento sensível. A cada um destes nomes coube a direcção de passagens e instantes de governo de ordem e de desordem; pertenceu-lhes fazer distinções e valências e optar com rigor entre o que dentro de cada obra teria a subdeterminação e a natural excisão da injustiça ou a plenitude breve da justiça. (Não deixei de ter ainda presente o diálogo Crátilo e a incisão da mobilidade que o personagem que lhe dá o nome introduz.) Os elementos, no processo, continuadamente se sucedem face ao interlocutor — que é cada um dos nomeados —, nunca de um modo gratuito, mas sempre por (pro)vocação e intenção de cada um dos artistas. As imagens das realidades verdadeiras, das formas, inaugurais como um corolário, advêm de uma acção continuada, de um decurso, de um acto que traz consigo um constante efeito de transformação.
O processo inclui na sua mobilidade, no seu desenvolvimento, nas suas passagens, múltiplas valências, que em grande parte são motivações provocadas por um corpo (sôma) quase infindo de sinais (sèma). Serão estes sinais que se encadeiam, que rolam, que rejeitam, que mostram, que iluminam, que levam à reflexão, ao julgamento do tempo justo e à suspensão do processo. O objecto chegou à locução do próprio nome que o soube trazer da treva. O nome — cada um destes nomes de A (de André), a S (de Susana), o primeiro e o último por ordem alfabética) — foi o artífice, o demiurgo, o condutor. Cada um deles trouxe, conduziu desde a mais profunda interioridade a articulação física da sua obra. Para a introduzir, ante o nosso ver, ante o nosso olhar, como uma qualidade dos seus próprios nomes, como um prolongamento... ou em muitos como um abandono de si mesmos. Mas talvez sempre como um exercício último de verdade: coisa que ultrapasse o movimento, ou que pelo menos valorize esse mesmo movimento. Coisa, que por ser obra, permanece num estádio de figura presente, valorada por um afirmativo é. Congénita ao próprio nome daquele que a criou, isto é, daquele que lhe deu forma.
Não saindo ainda do Crátilo, e desta hipotética assembleia de nomes, a verdade nunca deixará de guardar no mais fundo de si um enigma por desvendar, semelhante a uma sombra ou a um murmúrio. É, em cada obra, a verdade (alêtheia), a proposta de saída do processo. Que teve em cada um dos nomes aqui convocados o seu daimon, o seu demiurgo, o seu pequeno ou grande deus, o seu artífice (théos), que soube fazer correr (théin) o fio condutor do processo. E a cada momento, a cada etapa, a cada instante da sua passagem, da sua viagem verificou, eliminou, revisitou e soube escapar — como Ulisses ao som encantatório das sereias —, ao mais fácil. Para optar, por fim, por um obscuro reflexo, perdido entre o dia e a noite, entre a sombra e as trevas de uma matéria que as motivações processuais venceram.

Ainda sobre o processo. Ou acção de adiantar-se. De aparecer. De desenvolver ao longo de um aparecimento, enquanto sucessão de etapas de um fenómeno ou de uma aparência («As aparências são o rosto do invisível» Anaxágoras, D.L., fr. 21a). Uma passagem, por vezes, irreversível, condutora de um estado inicial ou intermédio a um final: a obra de arte, que segundo Platão vai permanecer como: «uma coisa aparente, e não um ser dotado de realidade» (Rep. X, 596e). Redutor juízo. Que leva a arte para um espelho negro e (talvez) a (tenha) encerra(do para sempre) longe (do sentido científico) dos fenómenos «das esferas, do sol e da lua» (Aristóteles, Met. , 8,1073b) ou da objectividade de que nos fala Epicuro «em fazer conhecer os fenómenos do céu» (D.L., 84-126).
As origens de um trabalho são raramente belas. Porque a arqueologia dos pensamentos que conduzem o processo remontam a um sujeito fundador de um, a cada instante, hipotético verdadeiro; que é resumo de um lameiro, de um magma (de elementos arrancados) do mundo. As origens ligam-se muitas vezes ao acaso ou a um princípio de singularidade que conduz o autor nas proximidades quer de uma dada valoração da história da arte quer da história do pensamento. Por isso, o movimento, a mobilidade conduz quase sempre, se não sempre, o processo. E fá-lo com um fim: o de criar imagens imanentes. Todas as etapas cresceram, desenvolveram-se e anularam-se até atingir como que uma tábua rasa: o objecto a propor, a mostrar.
O processo decorre de uma constante adequação de um agir sobre a paixão. Está presente o sentido aristotélico de sentimento intenso que tem consigo sofrimento (As Cat. IX e X, Met. , 21) e as regras de produção estabelecem-se até à obtenção de uma realidade última (provavelmente etapa de momentos futuros) através de uma constante luta entre a acção e a paixão. E entre si trocando a funcionalidade da adequação inteligível e visível. Ora é o agir que se reveste da capacidade de matar em sofrimento, e de eliminar etapas. Ora é a própria paixão, que desenvolve a adequação da mente criadora à coisa que está a ser criada e lhe dá a sua raridade de pathos e a sua ordem de discurso. Com os graus que Platão enumerou no Timeu (69d) para a paixão: prazer, inquitude, ousadia, temor e esperança, vai-se manifestando o carácter especulativo do processo. Espécie de matéria sonora, sobre a qual o autor, (à semelhança dos reis fazedores de chuva, no exercício dos seus poderes mágicos), vai ser capaz de extrair a obra. Mas desse mesmo poder demiúrgico, cada artista deverá distanciar-se, sem nunca esquecer que em relação ao pensamento primitivo, não pensa melhor. Pensará somente diferente. O distanciamento visa estabelecer distinção entre entendidas vozes sobrenaturais e vozes reais. As primeiras vogam desde uma remota e antiquíssima genealogia da obra. Situam-se na prisão do sujeito que é o seu autor e «só o destinatário as entende, as outras pessoas [que virão a estar presentes] não as entendem» (Wittgenstein, Fiches, 717, Gallimard, 1971).
O processo é um caminho de acesso à pequena verdade da obra. Verdade que de um modo único e mesmo final nunca terá lugar. O que nos é transmitido é a palavra de um imenso discurso, de um contínuo acto de pesquisa. Acto que em si mesmo, enquanto discurso e decurso de uma amplitude que é a história da própria obra a surgir, se pretende partícipe de um sentido (acção) e de um sentimento (paixão) definitivo, total; e que se quer dar a pensar e a ver num (idealizado) vazio de que se rodeia. Entre ideias recebidas e ideias excluídas, entre formas aceites e trabalhadas e formas rasuradas vence quase sempre a rarefacção ou um termo médio, ou o mais simples, ou o não esperado. Irrompe «o sofrimento, a paciência e o trabalho do negativo» (Hegel, Phénoménologie de l’esprit, trad. Jean Hyppolite, Aubier, vol.I, s.d.), para mostrar, no caminho das múltiplas passagens, surpreendentes presenças e angustiantes lacunas.
Como etapa de conseguimento surge uma abstracção personificada, de que deriva a obra, um erigido de facto. Desinteressante e inútil será quase sempre o processo. Mas dentro das suas fronteiras mantém-se vivo e desabrido no diálogo que sustenta com o próprio criador. E em si mesmo — processo — constrói a focalidade do seu mundo vivido e a cada etapa vencido, através de um continuado sistema regulador de dúvida e de pergunta e resposta. Um sopro inventivo e uma constante aproximação / distância fundam a sua análise (e síntese) crítica, para que de um modo económico atinja um certo tonus, uma transformação, um «conteúdo espiritual» (Horkheimer, Théorie critique, Payot, 1978).
A sua missão aproxima-se de um modo fabril, muitas vezes. Pois durante o processo há que deixar, para além de trabalhar a matéria ou a ideia, há que permitir sobretudo passear e olhar o horizonte do objecto e agarrar mais do que o seu exacto espaço em construção, o seu tempo constitutivo. Temporalidade que é de uma só vez o seu desenho racional e uma deslizante mimésis de um sentimento capaz de explicar a abertura e o desenvolvimento de múltiplas passagens, assim como o salvar o todo final de uma temerosa ruína. Progressão de um instinto mimético que projecta e adapta e passeia (de um modo englobante) a força expressiva do pensar e do ver, esforçando-se por adivinhar um próximo futuro, muito menos distante, mas de domínio indecifrável, pois continuadamente traz consigo a vertigem excessiva das contradições, da recusa, da exigência e da fragilidade. Ao fim do processo: a obra: é preciso que tenha o fulgor de um fósforo aceso na noite.
Cobre o processo a enunciação do possível. De tudo o que é suficiente para atingir e mostrar uma redução, um dado interesse, uma actividade, um exercício objectual, uma presença. O processo pode muito bem ser, ao longo de uma curva ondulatória que percorre as obras das 29 presenças nominais em Processo E Transfiguração, o que criou (ou deu simplesmente lugar a)o inacabável e a fragmentação ideal — uma forma de lonjura do que é próximo, de infinitude do que é limitado, de diferença do que se deixa percorrer pelo idêntico, de decurso do que é intemporal.

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Transfiguração: a erosão que confere identidade.
Max Weber em Ensayos sobre metodologia sociológica (Buenos Aires, 1982) refere a canção de uma sentinela edomita, da época do exílio, recolhida nas profecias de Isaías [21-11]: «Chega-me uma voz de Seir, em Edon: ‘Sentinela, quanto tempo durará ainda a noite?’ E a sentinela responde: ‘A manhã há-de chegar, mas ainda é noite. Se queres perguntar, volta outra vez.’»
A este regresso, a este «volta outra vez» se deve a história interna do objecto de arte. Aí reside o domínio da sua acção, a sua capacidade transfiguradora. Mais do que o ponto final de uma evolução, o objecto dado vai continuar, vai prolongar-se além — contínua aprendizagem de saberes. Sempre disponível, quer para o seu autor quer para o seu visitante, a activos negócio e ócio condutores de perspectivas específicas, como as da verdade, da autenticidade, da beleza ou a de uma prática de resistência às apropriações do mundo vivido pela contemporaneidade. Prática que envolve, cada vez mais, e ultrapassada há muito a privação da aura benjaminiana, a recepção da obra não como objecto válido em si e por si mesmo, mas em função quase (se não mesmo) exclusiva do nome que a assina. A esse imediato mercado do nome quis fugir a reunião dos nomes aqui reunidos em Processo E Transfiguração.
O mundo vivido por estas obras, durante estes meses do Verão de 2010, na Casa da Cerca, reclama-se somente como resultado de múltiplas subjectividades descentradas, originadas em muito diversificados imperativos de trabalho. Mais do que o reconhecimento imediato desta ou daquela presença ou de um julgamento de gosto, importa que os diversos momentos tragam consigo uma relação com os problemas da existência de cada uma das obras naquele ou em outro lugar possível; estendendo-se a um jogo de linguagem, desde si mesmo enquanto obra apresentada, a trabalhos próximos e distantes. Importa, pois, e muito, que os diversos instantes da exposição enviem e reenviem de uns para outros. Que a experiência de ver percorra o todo e que lance mesmo em abismo sobre a palavra arte as imagens e as figuras da arte que os 29 / 31 artistas trouxeram consigo.

Têm as exposições um destino. Num geral, um destino simples: o de mostrar, o de fazer chegar as suas condições de possibilidade a uma extensa «afinidade electiva». Que cada obra e que a racionalidade integrada do seu todo se convertam numa exigência genuína, para além da subjectividade (resistente) de cada acto autoral. Este é, ou deverá ser, também, o destino desta exposição. Deixando de lado o que possa ter, como corpo global, de coisa saturada e fechada sobre si. O seu argumento último, o seu valor reside nas referências escolhidas (nas obras, apesar dos nomes que as suportam — e desde sempre sabendo que sem a autoridade do criador, do seu autor, não subsistiriam). Na redução que cada uma das obras exerce sobre a que lhe está próxima. Neste acto redutor vai a importância em eco da obra sobre o trabalho que dela se avizinha, como também ocorre a sua transfiguração em fuga, para dar lugar ao aparecer de um novo espaço em representação. Esta é a mobilidade de uma exposição. Este é o seu percurso de valores. De comparações funcionais, mesmo. De identidades, encerradas e abertas em si mesmo, pois têm no presente do seu dar-se a ver a infinda cadeia de razões (e de sentimentos) para uso no seu tempo futuro. Tempo futuro que em «contextualidade contínua» escapa (em transfiguração ou em processo transfigurador) quer ao autor quer ao visitante. (C. Wright, Frege’s conception of numbers as objects, Aberdeen University Press, 1983.) Antes que a imagem de uma das obras se dissipe velozmente numa das que lhe está próxima, há que conquistar o espaço da sua representação ou perder o tempo da sua intimidade.
O eco de uma obra exerce-se sobre uma outra obra presente, repercute-se no espaço de uma mesma exposição. Situa-se (de forma maliciosa) com as suas propriedades de luz e de sombra, de mobilidade, de coloração, de volumetria. E uma única obra, um só objecto, sem nenhuma justificação a priori — para lá de uma imediata sedução —, toma muitas vezes por inteiro o campo preceptivo de um visitante. Diante do seu espaço segue-se a exigência do nome e do conhecimento do trabalho, em toda a sua extensão, de um «É» autoral que dá a ver. Mas esta passagem de sobreposição de uma obra sobre as restantes obras e elegendo (de modo que considerei malicioso) o seu visitante, o seu leitor, é recorrente. Repete-se com um número grande de outras obras presentes na finitude expositiva. Processo E Transfiguração: a verdade da experiência (em arte) contém sempre a referência a novas passagens. Neste sentido, aquele a que chamamos artista não é somente o que faz, mas é, sobretudo, aquele que é através de experiências, de múltiplas e constantes passagens. E este é o modo que tem de se pôr de acordo com o logos da arte, que é uma cristalização comum à história do homem.

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Há que dizer que cheguei num dia do fim do Verão de 2009 a um encontro com a Emília Ferreira, numa esplanada do Chiado, com o título desta exposição. E se processo teve sempre por detrás (na sua formulação) um certo paralelismo com o próprio plano da natureza, na medida em que traz consigo um conceito de irreversibilidade (pela passagem de um estado inicial a um final, que não pode ser reconduzido ao seu estado primeiro), já transfiguração chegou carregada de brumas. O seu ponto de partida terá sido, de um modo remoto, a Verklärte Nacht, de Arnold Schoenberg. Refiro-me à versão para orquestra de cordas (1917-1943). Foi para esse poema sinfónico que é A Noite Transfigurada que pensei na relação ou na não relação, no diálogo ou na sua recusa entre estes artistas e as suas obras. Aparentemente (ou mesmo na realidade) em número excessivo para o reduzido espaço físico da Casa da Cerca, mas esse aspecto talvez sirva em muitos aspectos o poema de Richard Dehmel (1823-1920), Weib und Welt (A Mulher e o Mundo), em que o compositor se baseou para compor uma música de sombras. Que acentua um diálogo doloroso entre dois amantes numa noite de luar e que termina numa vaguidão de serenidade e de esperança (sentimentos bem difíceis, mesmo para dois seres apaixonados, no ano de 1943, ano em que Schoenberg procedeu a uma revisão definitiva do seu poema sinfónico). Explorar, não universos sonoros como os que encontramos em A Noite Transfigurada, mas múltiplos acordes visuais e intensas expressões, (algumas vezes) melódicas e cromáticas, foi o que se buscou com este processo e, sobretudo, com a sua transfiguração.
Uma exposição é sempre uma forma de artifício, a que não consegue escapar uma certa bruma favorável à reflexão contemplativa. Para isso se convocam artistas e se convida o público. E tendo em conta o lugar cimeiro sobre o Tejo em que se situa a Casa da Cerca com os seus jardins, a paisagem, o seu confronto com o que resta da vila velha de Almada e toda a colina — quem vem de cacilheiro e faz a estreita marginal de casario em ruínas, para subir no elevador, espera (se acaso ainda espera alguma coisa) a intimidade entre um paraíso terrestre e um paraíso perdido. E o acaso até lhes deixou na namoradeira de uma das janelas sobre o rio, um exemplar do Decameron. É a instantes assim que chamo intimidade, mesmo entre a reunião de trabalhos de 31 artistas. Apesar do Verão de 2010 se parecer tanto com uma narrativa de ficção científica, a pedir bem mais do que a transfiguração de uma noite, um arquétipo de dilúvio inspirado na Tetralogia wagneriana. Mas todo aquele que da janela sobre os jardins ou da muralha sobre o Tejo se aproximar, talvez consiga ver a obra que elegeu entre todas, a flutuar sobre as águas do rio. E tal como sucede no final de Entre Os Actos de Virginia Woolf: «A janela era toda ela um céu sem cor. A casa perdera o abrigo. Era a noite antes de serem feitas as estradas ou casas. Era a noite que os habitantes das cavernas tinham visto de algum lugar alto entre os rochedos.» (Trad. Isabel de Freitas Lopes, Cotovia, 1991.) Flutuações de arte, flutuações da matéria do mundo e da matéria do espírito repousam na Casa e nos jardins. Um certo número de epifanias — de representações —, fere os limites da evidência e do tangível.
A transfiguração a que todo o trabalho de artista se submete repousa sob uma obsessiva dependência. As razões exactas serão um espaço e um tempo infindos (de não razões). Um estado de paixão que, mais do que sobre obra, cai sobre o seu amante na arte de a ver; que desce sobre os seus ombros, e que não conhece descanso nem origem. A transfiguração é um estado de mobilidade, com os seus instantes fortes e fracos (em tudo semelhante à paixão). Alguns instantes dos quais, capazes de conduzir à incandescência. Instante instável. Que em limite pode manter-se ou desaparecer. Mas no seu durar há e vive reciprocidade entre o sujeito e o objecto — sendo este uma pintura, uma passagem fílmica, uma escultura... Não somente amor por aquele objecto, mas bem mais que isso: um estado de paixão, recíproco. E que do lado do criador tem consigo, em cada trabalho, sofrimento, niilismo e, também, representação da vida e da morte.
A transfiguração é um desenlace em queda dentro da própria obra. Que se transfigura em queda interminável, quando se prolonga pelos dados preceptivos de quem a contempla. Um espaço e um tempo transfigurado que se expande por uma imagem fantasma. Imagem extensiva (ela percorre a memória de muitos, para além do seu artífice), com graduação lumínica, pois remete-se a um puro spatium e a uma profundidade que implica, a um só tempo indecisão e intensidade, a par de «percepções verdadeiras do mundo do sonho» (Henry Bergson, L’Énergie spirituelle, Alcan, 1919). Mas o objecto proposto, enquanto objecto de arte é, desde o seu início, apresentado e afirmado pela percepção do real visível.
Apesar dessa sua condição necessária, não deixa nunca de ser menos invadido de memória e por consequência de irrealidade, tal como sucede com o sonho. Por vezes, no decurso do seu trabalho, o autor suspende-se. Uma outra coisa apareceu sob os seus sentidos. E já não é exactamente a coisa inicial. É deste «aparecer /desaparecer» (Georges Didi-Huberman, Phasmes, Minuit,1998), que o autor parte para um surgir do novo, como coisa fortuita, inesperada, que ocorre fora de toda a pesquisa e de toda a procura prévia. Este tipo de passagem, já por si um amplo lugar de transfiguração, envolve de uma forma acidental e espontânea o acto soberano de criar. De onde, a acção transfigurar, o poder transfigurador estar de um modo flutuante, incorpóreo, fantomático, inquietante, nebuloso, como um mundo paralelo, sempre prestes a descer, a aparecer na obra a propor.

Cada um dos objectos de arte que nos são propostos não tem um exacto sentido por detrás de si; cada um deles tem infindos sentidos. Cabe ao olhar e ao ver fazer-se objecto com as obras presentes e prolongar-se em observação. Tendo em conta que cada observação aparece como uma força plástica e que cada significação alcançada se vai relacionar com outras obras, próximas e distantes. Quer ao redor de uma vida que no Verão de 2010 é o pulsar de Processo E Transfiguração quer no efeito retroactivo que cada obra, por si e em si, possa representar. Quer ainda no que de profético, em termos futuros, uma obra possa conter. (Sobretudo, no que respeita ao trabalho próximo do seu autor.) Mas a transfiguração é uma comunicação indirecta. Um sentido vocacionado para o infindo, para um enigmático pleno de presença / ausência. Impenetrável ao homem, à semelhança da divindade de deus — o que não impede que não se persiga a sobre-abundância desse ponto de fuga. Impenetrável como igualmente é a própria intimidade do homem. No entanto, a sua arte dissimula o seu saber e percorre, em transparência de sentidos, o infindo desconhecido da sua possibilidade de experiência. Processo E Transfiguração: o mistério permanecerá presente no coração do tempo e do espaço reais.